(O regressado do esquecimento pela indiferença)
Esquecera-se ele de Constâncio, seu amigo desde a escola primária, ao contabilizar a ausência ou presença de amizades na sua vida, pela desvalia em que as tinha.
Fazendo jus ao nome, Constâncio era fiel a uma amizade que só existia na sua cabeça e, crê-se no seu coração. Haviam sido colegas de carteira desde a primeira até à quarta classe e continuaram no mesmo liceu e turma até ao final.
Assim, sem esforço de qualquer um, muito menos de Mércio, solidificara-se uma relação infanto-juvenil que durava, unilateralmente, ao longo dos anos, inclusive à mudança de século.
Não sendo a família de Mércio uma família ilustre pertencia à burguesia endinheirada de Matosinhos, possuindo, para além da moradia própria em que habitavam, uma segunda e opulenta casa em Espinho para onde iam a banhos durante quase todo o Verão.
Por seu lado Constâncio Oliveira Neves, era filho de trabalhadores assalariados que viviam modestamente, em casa de aluguer, sempre a deitar contas à vida, no sonho de fazer mais umas poupanças que iam enterrando na casa que herdaram na aldeia das Neves, no distrito de Beja, de onde eram oriundos e de onde tinham fugido por causa das perseguições políticas feitas pela PIDE-DGS, dada a proclara simpatia pelos vermelhos e a antipatia ao regime.
Apesar de já estarem a residir no norte há largos anos, o filho já aí fora gerado, o seu sonho continuava a ser regressar ao Alentejo. Como a maioria dos emigrantes deseja regressar a Portugal, cá envelhecer e morrer falando uma língua "que toda a gente entende".
Depois do 25 de Abril de 1974 pensaram os pais Oliveira Neves em retornar, mas deitando contas aos anos de trabalho, às convulsões em que o Alentejo se encontrava mergulhado com a reforma agrária e o enorme atraso a que tinha sido sujeito, em represália, pelos governos de Salazar e de Caetano (atraso ainda maior do que o geral do país. Talvez só comparável ao de algumas zonas das Beiras e, principalmente de Trás-os-Montes), decidiram continuar nas suas vidas sem turbulências, dado serem pacatos, respeitadores, trabalhadores e bons vizinhos, tendo, depois de evaporada a inicial desconfiança das gentes de Matosinhos, sido bem aceites e feito inúmeras amizades ganhando o respeito dos que com eles privavam. Viviam pois, como diziam: "remediados"!
Ora Mércio levava para as aulas, lautos lanches bem recheados de vitualhas que não faziam mesa em casa dos Oliveira Neves. Vitualhas que repartia irmãmente com Constâncio, mais por inércia do que por generosidade, facto que ao outro era alheio. Para Constâncio o que contava era que o amigo sempre dividira os lanches , sempre o aceitara e integrara nos seus folguedos, privando quase em exclusividade com ele, o que interpretava como sinal de amizade maior.
Pois foi este mesmo Constâncio que um dia lhe bateu à porta e lhe aterrou nos braços, num abraço de urso enquanto, sem parar e preso de grande comoção a raiar as lágrimas, repetia: “ora, não querem lá ver, o meu grande amigo Mércio!”
Mércio não reagiu. Como poderia ele perante esta explosão, esta avalanche de homem e de amizade que, literalmente lhe caiu em cima, sendo ele um indivíduo seco, sem emoções, quanto mais explosões?
Paralisado deixou-se ser abraçado, apalpado, a ver o estado de conservação enquanto Constâncio dizia: “mas tu tás bem pá, tás bem! Talvez um pouco gorducho, mas tás bem....” . E lá lhe ia dando carinhosos beliscões nas bochechas.
(Fim da 3ª parte)