Sou moura. Uma moura, encantada há mais de nove séculos.
Vivo aprisionada no coração da pedra.
Fui enfeitiçada como castigo, por ordem de meu pai, por amar um infiel! Um cristão!
Desde então, encerrado no coração do rochedo pulsa o meu.
Só serei liberta deste cativeiro pela morte, no dia em que o coração da pedra parar de pulsar, a pedra cessar de existir.
Então terminará meu tormento.
O coração da pedra é frio e duro. O meu, de carne e sangue, vive oprimido.
Tal o castigo que meu pai me impôs. Pela eternidade! Por ter amado e fugido com um infiel, o valoroso e meu mui amado Dom Godofredo de Gondar, impiedosamente morto diante de mim.
Provavelmente desconheciam que as pedras têm um coração, pulsátil como o nosso, mas duro como a pedra. Da mesma matéria feito. E quando digo que é duro não pretendo significar impiedoso ou cruel. Nada disso. É da sua própria matéria, a matéria da pedra. No restante até é gentil. Não se guia por normas iguais às humanas. Tem outras regras, outros valores. Parece pairar acima do bem e do mal, tal como os entendemos, conceitos que nem alcança porque a pedra é tão velha como o planeta, mais velha do que qualquer outra coisa conhecida e rege-se por critérios bem acima do dos mortais, para lá do que consideramos bem ou mal, sendo que tais conceitos são relativos, dependendo de cada cultura e mudando com os tempos. Isto já aprendi aqui.
No coração da pedra o meu pulsa e bate. Durante séculos chorei muito. Agora não. Olho os acontecimentos de outra forma. Não sei se estou a deixar de ser humana, se fui contaminada pela natureza da pedra...
As notícias do mundo chegam-me pelos pequenos animais que rastejam e correm pelas frinchas, pelas rachadelas, fissuras que o tempo, as águas infiltradas e estremecimentos vários vão causando ao rochedo.
Falam-me das mudanças dos tempos, dos hábitos, de tudo o que se move à superfície e que tão diverso é do que conheci.
Hoje acordei sentindo um doce estremecimento, um afago.
O coração da pedra vibrando, ou melhor: quase ronronando.
Os nossos pensamentos estão quase fundidos. Basta-me pensar: “rochedo” e sou invadida pelo seu pensamento, pelo seu sentir.
Soube então que o dia tinha amanhecido nublado, mas com um vento morno e afagante que deslizava mansamente à superfície do rochedo fazendo-o arquear o lombo, a superfície exposta, como gato pedindo mais carícias.
Por dentro, uma vibração percorria-o e sentia-se uma brisa morna e perfumada a correr-nos os corpos.
Mentalmente espreguicei-me. Senti a brisa no rosto, a acariciar-me, a brincar com os meus cabelos, levantando-os num bailado e deslizando-me terna pelos ombros. Fez-
-me lembrar as mãos do meu amor.
As fissuras do rochedo enchem-se com esta brisa que o percorre de forma vivificante.
Com ela viajam os ruídos do mundo lá em cima. Ouço o pipilar dos pássaros, vozes, sussurros e cânticos que não entendo, mas que são agradáveis de ouvir.
Se ao menos meu pai nos tivesse castigado de igual forma Dom Godofredo estaria aqui comigo, faria parte das memórias deste local, o seu coração pulsaria a par do meu, inscritos ambos no coração de pedra do rochedo.
Assim, perdido no tempo, só eu e o rochedo, que o conhece através de mim, dele guardamos memórias.