10 março 2006

Um César em Viamonte



um infinito silêncio

(UM CÉSAR EM VIAMONTE)
--Que vem aqui fazer um César?—perguntareis, bons viamontenses.--Que vem fazer com as suas sandálias, a toga, a túnica, as pústulas, os vícios, a administração da justiça, o maquiavelismo ante litteram, as suas frases feitas há milhares de anos e dois novos meses entre Novembro de Dezembro, um César em Viamonte?
Atolar-se na lama que enche as ruas, sofrer os ásperos frios que penetram nas almas, cansar os mediterrânicos olhos no bloqueio verdenegro dos montes, caçar aí perdizes e coelhos, pescar, no rio, bogas, tencas, escalos e as últimas trutas ( chondrostoma polylepis, tinca-tinca, rutilus arcasi, salmo trutta ), sentar-se num dos quatro marmóreos banco que se espalham pelo largo da Câmara, visitar as obras do futuro parque, ir até ao café?Onde instalar um César? Na pensão de muros salitrosos, janelas de caixilhos semipodres e cortinas picadas pelos dejectos de várias gerações de gordas moscas de gado, cozinha enegrecida pelo fumo, sala de jantar desconfortável , onde, à mesa redonda, com os pés na braseira, se alapardam caixeiros-viajantes, terceiros-escriturários, guarda-fios? No edifício da edilidade, em cujo rés do chão funciona a Repartição de Finanças, com os sobrados de madeira carunchosos e rotos e os de tacos desnivelados?

No Tribunal ou na Conservatória do Registo Civil? Na cadeia sem presos, mas com as camas de ferro desconjuntadas e as enxergas manchadas de urina cobertas de esburacados e finos cobertores? No hospital? Sim, o hospital é um edifício moderno, arejado, amplo, limpo. “Só que esta gente não vem aqui tratar-se senão em última instância”, dirão ambos os médicos , e um hospital, enfim, por muito funcional que seja, não é, na verdade, o lugar mais apropriado para receber um César mesmo um tanto epiléptico. Talvez em casa do juiz, não fora o facto de o casal ter quatro filhos e estar presentemente sem criada; ou na do delegado, não fora este estar preocupado com os concursos, não ter também criada, nem lenha, nem mobília tão conservada e sólida.Por que não levá-lo, em triunfal cortejo de carros de bois, mulheres de luto, homens muito velhos, pobres comerciantes, funcionários públicos e garotos ranhosos, para casa do visconde e Viamonte, notável que celebrizara o nome da povoação pelos seus amores com uma cantadeira , tocados em lá menor e maior, ré, sol, fá, dó sustenido em todas as guitarras do princípio do século? Porque, ao certo, ao certo, não se sabia onde ficava o seu solar. Diziam uns que ele se situava nos confins da vila – um casarão em ruínas onde, entre mal tratado gado, se albergavam, hoje, duas ou três famílias de pobres jornaleiros e pastores. Outros afirmavam que a nobre casa se erguera junto ao tanque para onde se voltava, exasperada, a gárgula da igreja matriz a quer chamavam sede. Pouco se sabia também do visconde. Havia quem dissesse que jamais estivera ele em Viamonte, havia os que contavam que trouxera à vila a cantadeira, acordando, surpreendendo os íncolas com prolongadas noitadas de fado, escandalizando a escumalha com a sua abissal paixão de nobre-fim-de-raça. Se não fora uma rua com o seu nome—a rua do café, que ia do pelourinho ao largo da Câmara--, por que não dizer até que o fidalgo jamais existira? E mesmo assim, por que não poderia uma rua, uma ruela, um beco, em confronto com as vias das urbes, ter o nome de um mito?

Havia, pois, um grande problema: hospedar César.
E, além desta dificuldade de não pequena monta, uma outra, não menor, se apresentavas: que havia, em Viamonte, digno de se mostrar ao augusto romano?O estafado e gasto pelourinho?As minas de alabastro e mármore que há muito já estavam paralisadas por desinteresse da companhia inglesa sua concessionária que, a braços com a falta de mão de obra e de infra-estruturas, se vira obrigada a encerrar a exploração?A igreja matriz, barroca e triste, onde, os homens de um lado, as mulheres do outro, adoravam um deus desconhecido?Uma capela particular com um alto-relevo policromado, em que uma Nossa Senhora, sentada e de perna cruzada, dava o regaço azul a um Menino Jesus adormecido?

As mulheres em homens—os homens que haviam partido para a França, para a Alemanha, para as Astúrias; que tinham ido combater em Moçambique, na Guiné, em Angola?Os poucos homens válidos e os estropiados?Os vários presidentes da Câmara, que, após os mandatos, passeavam sorumbáticas reformas de outros cargos ou se alinhavam, catatónicos, nas mesas dos cafés, sumariando, lamuriosamnete, as realizações efectuadas sob as suas gerências?Não, um César não é aqui preciso. Seria mais útil um barbeiro, uma parteira, um electricista, um odontólogo, um carpinteiro conscienciosos, um oculista, um engraxador ou até um posto de gasolina super, talvez um quiosque onde se vendessem todos os Corin Tellado, Guidas e Sonho que a mocidade devoraria para não deixar de pensar apenas em face dos aparelhos de televisão ou um cinema que exibisse os filmes estreados há um ano no Porto (a 325 quilómetros de Viamonte) e há cerca de quinze meses em Lisboa (a 573 quilómetros de Viamonte).
Não, os Césares não fazem falta.

António Rebordão Navarro
(Um Infinito Silêncio, 1970)




Nota Bene - O livro "Um Infinito Silêncio" foi premiado em 1970, com o prémio Alves Redol.
O Júri foi constituído por: David Mourão Ferreira; Eduardo Lourenço;Jacinto Prado Coelho; José Palla e Castro e Óscar Lopes.

15 comentários:

Anónimo disse...

Não conhecia este texto e deu-me imenso prazer lê-lo.
Beijinhos
Teresa David

SL disse...

Bom texto. Desconhecia o autor...
Voltei.
Jinhos

Anónimo disse...

Olá, espero que esteja bem, ando meio perdido e estou a ver ou a tentar se me reencontro.
Ando por aí, sem saber por onde, creia-me que os últimos choques abanaram-me mais do que contava.
Fique bem e continue a sorrir.
Bjnhs
ZezinhoMota

Amaral disse...

Apenas posso dizer que não conhecia nem nunca li nada desse autor. Não posso realmente ter uma ideia formada sobre a obra que é tema do teu post…

greentea disse...

e tantos viamontes por aí...tantos infinitos silêncios pelo país fora.
Um País de infinitos silêncios, este.

Rosmaninho disse...

Há sempre um livro desconhecido à minha espera.
Agradeço-te a sensibilização que a ele me fizeste.

~*Um beijo*~

lena disse...

queria dar-te os parabéns pela partilha dizer mais o quê. que o tenho acompanhado e o admiro e drei com ele: "Não, os Césares não fazem falta."
António Rebordão Navarro tem mais livros premiados e muito bons

um beijo porque mereces tanto pelo que nos ofereces, boa amiga

lena

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

As nossas boas vindas como inscrita no Encontro de Blogs em Alvito a 22 de Abril.

Também o teu acompanhante é uma honra para o nosso Encontro.

Como vês, os blogs são muito importantes na divulgação dos nossos homens das letras. Como custa ler que só aqui os vão conhecendo.

Bom fim de semana.

Beijos

Mac Adame disse...

Com tão distinto júri, nem me atrevia a discordar.

Caiê disse...

Obrigada por esta partilha! Sempre boas escolhas, ahn?;)

pecado original disse...

O prazer é que é meu encontar-te por aqui... belas palavras!!!!


beijinho

Anónimo disse...

Belo e contundente texto!
Um abraço fraterno.

Joaquim Amândio Santos disse...

verdadeiramente delicioso o texto que aqui saboreiei.
momento irrepetível.

voltarei.

BlueShell disse...

Gostei imenso do excerto! Fiquei com "água na boca"...

Jinhos, BShell

Anónimo disse...

What a great site » » »