24 fevereiro 2006

Branca Clara das Neves e os seus gémeos azúis


Coloca uma palavra
no vale da minha nudez
e planta florestas de ambos os lados
para que a minha boca
fique toda à sombra.

Ingeborg Bachemannn

“A concha furada no centro, suspensa no peito por um fino fio entrançado de couro, não queria dizer nada: nem bois, nem linhagem. O cinto de pérolas de marfim, com gravações geométricas e concêntricas, também não tinha ficado do dia de noivado, nem de uma qualquer passagem pela casa das mais velhas.Escolheu a Kihita para viver quando viu pela primeira vez as barreiras e conseguiu ficar longe da serra e esquecer o ruído das árvores em queda, e o cheiro intenso da lenha queimada.Branca Clara das Neves, a possuída do barro, como era conhecida entre os nyaneka, perdera o coração de oleiro, dado por sua mãe, durante uma travessia de que já não tinha memória. Dentro de si, a preto e branco, como numa fotografia, as cores do medo tinham nomes conhecidos: a praga, a peste, a maldição.Por isso, ficara ali quieta a ver o sol em estilhaços no branco do barro, usando as mãos como asas, como garras a juntar fiadas de pérolas de marfim para o penteado das meninas púberes. Ninguém como Branca Clara sabia estender, pelas pontas, longe do barro, a pele de uma vaca escolhida entre as melhores do rebanho para o sacrifício e expô-la ao sol, para os banhos de sal diários.

A fama de muda, artesã e curandeira livraram-na da perseguição dos vizinhos e da certa fogueira como a que vira um dia crescer sobre o corpo da sua mãe, vestida de branco e despedindo-se da vida, dona dos ventos, oiá borboleta.Quando ninguém a via, arava o barro branco e o silêncio.Ninguém soube como se arredondou a sua barriga. Talvez de tanto se alongar sobre o barro ele tivesse fermentado dentro de si e, entre um cacimbo grande e um pequeno cacimbo, dois gémeos azuis, iguais, pequenos, de um azul perfeito saíram de dentro de si. Lavou-os com barro branco protegendo-os das pragas e dos animais do mundo inferior. Saudou o grande senhor do barro, o construtor da cabeça dos homens, o que mistura no barro todas as coisas da natureza: terra, águae ar. O que sopra dentro da boca dos homens o hálito fresco das manhãs.Continuou, muda, a tratar da vida: pequenas contas de marfim, fios de couro cada vez mais finos e mais firmes, criando os gémeos de seu próprio leite, tão branco e tão espesso como o barro, durante mais de três anos. Foi quando saiu do lugar do barro e se juntou às mulheres iniciadas, as portadoras do cinto de casca de ovo de avestruz, senhoras dos caçadores e das bonecas.Para poder ficar, deixou que os gémeos azuis aprendessem a linguagem partida dos novos senhores. Enquanto estes cresciam e ficavam pastores, devagarinho, Branca Clara, a filha da borboleta, a que um dia tinha cruzado o mar, ocupou-se das bonecas.


Para poder ficar, deixou que os gémeos azuis aprendessem a linguagem partida dos novos senhores. Enquanto estes cresciam e ficavam pastores, devagarinho, Branca Clara, a filha da borboleta, a que um dia tinha cruzado o mar, ocupou-se das bonecas. Substituir uma espiga de milho por um corpo entrançado em fibras, colocar por ordem os sete panos da saia, aumentar a densidade das contas do cinto. Os penteados eram a sua ocupação fundamental; fiadas de contas no cabelo, rematadas com cauriz e botões pregados a couro, laços de fitas vermelhas, secas do sangue inicial e pesadas de tacula.Nunca pode guardar nenhuma para si. Eram as bonecas da família, passadas de tia a sobrinha, continuadoras da linhagem, as que garantiam os filhos, as sementeiras e as colheitas.Quando os gémeos partiram, grandes e azuis, pela vida, amassou no barro branco uma pequena boneca que chamou a nova filha do barro Pela primeira vez ousou invocar os senhores de cima e das profundezas. Pediu:Coloca uma palavrano vale da minha nudeze planta florestas de ambos os ladospara que a minha bocafique toda à sombra.”


Ana Paula Tavares (escritora angolana)

POST SCRIPTUM - quem não conhece o rosto da Rita, que desapareceu no passado dia 17 em Matosinhs, p.f. veja o post abaixo, p.f.divulgue e esteja atento.

13 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

estilhaço-me.....fico....por aqui....




a gostar.


um beijo.

maresia_mar disse...

Olá Tmara,
gostei de tudo mas principalmente do «azul» ah ah.. Bjhs e bom fds

Anónimo disse...

Olá, tudo bem?
Olha, fiquei muito contente de me teres ido visitar. Bfs
beijinhos;)

José Gomes disse...

Gostei do texto e da foto.
Bom fim de semana.
Um abraço.

Manel do Montado disse...

Boa escolha e bom fim de semana.
Voltarei para visitar os teus outros cantos.
Beijos

lena disse...

hoje tocas-me e conseguiste que uma lágrima corresse no meu rosto, já não lia há algum tempo Ana Paula, que admiro, deixo-te ainda com lágrimas no rosto um poema ela como se a escutasse a dizê-lo:

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe


Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo acesso
não bato a manteiga
não ponho o cinto


VOU
para o sul saltar o cercado

Paula Tavares


um beijo para ti, que me surpreendes sempre doce TMara, um abraço com muita luz

lena

Anónimo disse...

Querida amiga, esse texto me deixou enredado com a sua magia! Grato, de coração. Um beijo.

Unknown disse...

Amiga quando leio coisas de Africa fico delirada, é lindo o texto. Beijinhos para ti e bom fim de semana

isabel mendes ferreira disse...

b e i j o .

Caiê disse...

Fiquei curiosa sobre esta escritora que não conhecia! Obrigada pela dica! Lindo, o texto!

Micas disse...

Não conhecia esta escritora. Fiquei aqui a ler, a ler...gostei imenso. Grata pela partilha.
Beijinho e bom domingo.

(Já passei a foto da Rita a todos os meus contactos)

Amaral disse...

No esplendor azul das vastidões do espaço encontramos sempre um pouco de nós, quer seja dito, pensado ou feito…

isa xana disse...

aguçaste a minha curiosidade sobre esta escritora. gostei e nao a conhecia.

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