17 fevereiro 2006

As velhas senhoras (parte IV)


Para quem quiser ler ou voltar a reler a última parte eis o link

Parte IV:

O senhor engenheiro Álvaro contraiu segundas núpcias com uma bela escandinava (a menina sempre assim a ela se referia quando estávamos sós) e fixou residência em Copenhaga. As crianças continuaram connosco, ou, melhor dizendo, com a base aqui, mas itinerantes por esse mundo.
Agora o menino Miguel está a fazer uma pós-graduação em computadores e gestão, em Inglaterra (ai o susto em que vivemos por causa do atentados. O nosso pior pesadelo tomou forma no passado dia sete de Julho com os atentados no metro e nos autocarros. Cada uma de nós agarrou-se a um telefone e só sossegamos quando lhe ouvimos a voz máscula e jovial), a menina Márcia está nos Estados Unidos fazendo o doutoramento em psicologia do comportamento.

A minha menina sente-lhes muito a falta. Confesso que eu também. Agora estamos nós para aqui, duas velhas e dois gatos numa casa enorme. É certo que aparecem muitas vezes, a maior parte delas sem avisar, pela alegria de nos surpreenderem e verem as nossas caras felizes. Frequentemente trazem amigos de outras nacionalidades. Imagine-se, eu, que vim para aqui como companheira de brincadeira e “ama” da menina, a bem dizer analfabeta... assinava o meu nome e lia os títulos. Mais do que isso representava um esforço hercúleo e uma vergonha indisfarçável pela dificuldade.

Valha a verdade que tanto os pais da menina como esta sempre me trataram muito bem. Vim, mais tarde, a perceber que nunca fui tratada como criada mas como uma parente, desvalida embora.
Como companheira da menina, e sua “ama” tinha uma cama no quarto dela, fizeram-me vestidos bonitos para a acompanhar sem vergonhas e, se nas primeiras semanas comi na cozinha, foi por pouco tempo, pois prestes a menina pediu aos pais a minha presença e companhia nas refeições, na mesa da família.
Não se opuseram os pais e assim ficou até hoje, apesar de depois do casamento da menina, tendo eu seguido com ela para a residência do casal, instei para que as minhas refeições se fizessem na copa. Nunca o admitiu, deu-me o estatuto de governanta (não sei para quê pois que ela sempre foi uma excelente dona de casa e mantinha todo o serviço distribuído e organizado como bem oleada roda), deu-me então o estatuto de governanta e dama de companhia.

Ao longo de nossas vidas ensinou-me a ler e a escrever, desenvolveu-me o gosto pela leitura e pelas mais variadas artes de que os meus familiares nunca terão ouvido falar até terem televisão, muitos anos mas tarde.
Para onde a menina fosse, eu ia. Conhecia largas parcelas deste nosso magnífico planeta, seus povos, usos e costumes.
Em casa, a bebé tratou-me sempre por tia, pois assim lhe foi dito que deveria ser. As crianças mantiveram o mesmo tratamento.

(continua)