31 outubro 2004

ESTAVA VAZIA (continuação)

Continuei a caminhada, alheada agora do passeio, do percurso. Perdido o ritmo da marcha, obcecada pela total ausência de qualquer sinal de vida na cidade.
Toda a aminha atenção estava focada nesta, nas portas e janelas, nas ruas, no mais breve sinal de movimento que meus olhos detectassem; nos ares, esperando senti-lo fundido pelo grito estridente de uma gaivota, atravessado pelo seu vôo, planado ou picado, caíndo abruptamente a pique sobre um peixe.
Mas, para além de mim e dos círculos que me rodeavam, nada mexia. Súbito um novo remoínho se formava e começava a envolver-me. O anterior caía, num movimento espiralado, como se o vento ou as areias se cansassem e a força da gravidade as atraísse irremediavelmente para o solo.
Enquanto isto acontecia o cicio, no qual me parecia distinguir palavras, era cada vez mais forte e, não sei se por os ouvidos se irem habituando, cada vez mais nítidas me soavam palavras.
Confesso que um medo primevo, do desconhecido, me ia assaltando e dominando. Dizia a mim própria que tinha que me controlar e concentrar nas palavras que me parecia identificar, pois elas trariam, por certo a chave deste enigma.
Medos ancestrais assaltavam-me a alma, e a racionalidade era a que as descargas de adrenalina permitiam. A adrenalina em excesso tem destas coisas, ou nos bloqueia, ou nos permite atingir inesperados níveis de acuidade e controlo visando a sobrevivência. Penso que foi o que me aconteceu.
Uma grande calma desceu sobre mim, apesar da estranheza do mundo em que me encontrava. Continuei a caminhada, embora sabendo que deixara de ter qualquer sentido, pois seria mais importante voltar à cidade, tocar às campaínhas, bater às portas, telefonar para números ao acaso até alguém me responder. Sei lá, fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para a acordar e repor no costumeiro frenesim.
Continuei a andar pelo areal, mas os olhos estavam presos à cidade, via os redemoínhos de vento e areias espalharem-se pelas ruas, cada vez mais no coração da cidade, e elevarem-se cada vez mais altos, em rodopios de espiral, acompanhado a altura dos edifícios e ultrapassando-os mesmo, em muitos pontos. Desta forma pude acompanhar o seu percurso pelas ruas e pareceu-me que obedeciam a um padrão, que se deslocavam para um ponto preciso da mesma onde todos confluiriam no instante exacto.
Enquanto isto, desatendera os sons, vozes ciciadas que dançavam ao meu redor. Cada vez mais parecia-me ouvir o meu nome, como que cantado numa lenga-lenga, entremeado de outras palavras que tinha dificuldade em discernir.
Por istantes havia-me concentrado nos sons. Voltei a atenção para a cidade e vi-a agora também deserta dos remoinhos de ventos e areia. Só lá, num ponto alto da mesma, se elevava um remoínho gigantesco para onde todos tinham confluído. Um arrepio percorreu-me, corpo e alma irmanados no frio gélido. Tanto quanto a vista e o sentido de orientação me diziam aquele imenso rodopio, qual gigantesca tromba de areias dançantes, estava diante de minha casa e o cicio já o não era, antes uma voz grave, que dizia, claramente pronunciado, o meu nome, que me chamava e, num rompante investiu contra a porta. Senti a violenta pancada, o chão estremeceu até mesmo no areal debaixo dos meus pés, e era como se os ventos e as areias tivessem mil punhos que martelassem a porta enquanto, num crescendo, chamavam o meu nome, mais alto, mais alto e mais forte.
Acordei estremunhada, o despertador tinia furioso e minha mãe chamava-me. Eram horas de acordar e ir para a faculdade.

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