ANA, grávida da nova Lisboa
Publicado às
00.09 e na Pág:14 do Jornal de Notícias (JN) de 2013.01.03
«Ah, sim, o discurso de Cavaco. Talvez, talvez, depende, "eu
avisei". Sempre tarde.
Adiante. Falemos de coisas concretas
e consumadas: o casamento da ANA, uma historieta que tem tudo para sair muito
cara. Passo a explicar: a ANA geria os
aeroportos com lucros fabulosos para o seu pai, Estado, que, entretanto
falido, leiloou a filha ao melhor
pretendente. Um francês de apelido Vinci, especialista em autoestradas e
mais recentemente em aeroportos, pediu a nossa ANA em casamento. E o Estado entregou-a pela melhor maquia (três
mil milhões de euros), tornando lícita a exploração deste monopólio a partir de
uma base fabulosa: 47% de margem de exploração (EBITDA).
O Governo rejubilou com
o encaixe... Mas vejamos a coisa mais em pormenor. O
grupo francês Vinci tem 37% da Lusoponte, uma PPP (parceria público-privada)
constituída com a Mota-Engil e assente numa especialidade nacional: o monopólio
(mais um) das travessias sobre o Tejo. Ora é por aqui que percebo por que
consegue a Vinci pagar muito mais do que os concorrentes à ANA. As estimativas indicam que a mudança do
aeroporto da Portela para Alcochete venha a gerar um tráfego de 50 mil veículos
e camiões diários entre Lisboa e a nova cidade aeroportuária. É fazer as
contas, como diria o outro...
Mas isto só será lucro quando houver um novo aeroporto. Sabemos que a construção de Alcochete depende da
saturação da Portela. Para o fazer, a Vinci tem a faca e o queijo na mão. Para
começar pode, por exemplo, abrir as portas à Ryanair. No dia em que isso
acontecer, a low-cost irlandesa deixa de fazer do Porto a principal porta de
entrada, gerando um desequilíbrio turístico ainda mais acentuado a favor da
capital. A Ryanair não vai manter 37 destinos em direção ao Porto se puder
aterrar também em Lisboa.
Portanto, num primeiro momento os franceses podem apostar
em baixar as taxas para as low-cost e os incautos aplaudirão. Todavia, a prazo, gerarão a necessidade de um novo
aeroporto através do aumento de passageiros. Quando isso acontecer, a Vinci
(certamente com os seus amigos da Mota-Engil) monta um apetecível sindicato de
construção (a sua especialidade) e financiamento (com bancos parceiros). A obra
do século em Portugal. Bingo! O Estado português será certamente chamado a
dar avais e a negociar com a União Europeia fundos estruturais para a nova
cidade aeroportuária de Alcochete. Bingo!
A Portela ficará livre para os interesses imobiliários ligados ao Bloco Central
que sempre existiram para o local. Bingo!
Mas isto não fica por aqui porque não se pode mudar um aeroporto para 50
quilómetros de distância da capital sem se levar o comboio até lá.
Portanto, é preciso fazer-se uma ponte
ferroviária para ligar Alcochete ao centro de Lisboa. E já agora, com tanto
trânsito, outra para carros (ou em
alternativa uma ponte apenas, rodoferroviária). Surge portanto e finalmente a
prevista ponte Chelas-Barreiro (por onde, já agora, pode passar também o futuro
TGV Lisboa-Madrid). Bingo! E, já agora: quem detém o monopólio e know-how das
travessias do Tejo? Exatamente, a
Lusoponte (Mota-Engil e Vinci). Que concorrerá à nova obra. Mas, mesmo que não ganhe, diz o contrato com
o Estado, terá de ser indemnizada pela
perda de receitas na Vasco da Gama e 25 de Abril por força da existência de uma
nova ponte. Bingo!
Um destes dias
acordaremos, portanto, perante o facto consumado: o imperativo da construção do
novo grande aeroporto de Lisboa, em Alcochete, a indispensável terceira
travessia sobre o Tejo, e a concentração de fundos europeus e financiamento
neste colossal investimento na capital. O resto do país nada tem a ver com isto
porque a decisão não é política, é
privada, é o mercado... E far-se-á. Sem marcha-atrás porque o contrato agora
assinado já o previa e todos gostamos muito de receber três mil milhões pela
ANA, certo? O casamento resultará nisto: se correr bem, os franceses e grupos envolvidos
ganham. Correndo mal, pagamos nós. Se ainda estivermos em Portugal, claro.»
Daniel Deusdado
Jornalista
P.S- negrito e maiúsculas minha autoria.
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