O 3º Jogo das 12 Palavras do Eremita está no "ar" e lá, no Eremitério, podem ler 34 textos. Vale a pena, garanto, conhecer o conjunto na sua diversidade e qualidade global.
As 12 Palavras indicadas por 4 paricipantes, 3 palavras cada, para esta 3ª edição foram:
A morte, como a manhã, não é uma vulnerabilidade nem uma obstrução à vida.
Ambas fazem parte de uma imensa exuberante e bela tapeçaria feita de memórias, presenças e ausências, alegrias e dores que, sobre a corpórea silhueta da matéria que nos dá a humana forma, caem como o orvalho na flor, alimentando-a sem possibilidades de a afastar, sem conselheiro que nos possa orientar por maior que seja a mágoa, a pena de deixar os que amamos e de os ver em sofrimento.
Entre vida e morte existe um espaço intersticial onde a criança emerge. Aparentemente frágil exponente de todas as razões que ao longo do crescimento caem no oblívio, mas eterna combatente sempre vencedora.
A criança olhava a tapeçaria quando uma silhueta se interpôs em total obstrução à visão da mesma.
A luz da manhã incidia sobre ela e era a melhor hora para a ver e aperceber a vulnerabilidade das personagens que o génio que a tecera conseguira transmitir dando-nos a sensação de vida.
A criança move-se e ergue a voz, pedindo à pessoa de quem só vislumbra a iluminada silhueta o favor de se afastar, mas a sua atenção é atraída por uma pequena pena, quase penugem ainda, que parecia vogar nos raios de luz criando uma bela coreografia.
Noutra ala do palácio, vedada ao público, o conselheiro, entediado ouvia o exponente. De onde em onde emitia breves murmúrios assertivos, fazendo parecer prestar atenção, mas distraía-se observando o cintilar do orvalho residual nas plantas do jardim.
E foi nesta desatenção ao ser humano que lhe falava das suas dificuldades que a morte o veio encontrar.
O texto da McCorreia
"O Senhor Conselheiro
-Tenho muita pena…
Palavras ditas do cimo do que eram três degraus.
No alcatrão um carro buzinou para dentro do silêncio que era ela inteira.
Maria Ema. Silhueta debruada na luz de começo de noite, abraçava entre as mãos as pontas do casaco e uma mala. Figurinha magra, o vestido pendia sobre as botas rasas. Da boina, chegada sobre a testa, soltavam-se pontas lisas de um cabelo ruivo.
- Um cabelo tão vermelho deve ser único no mundo.
Dizia-lhe a mãe penteando-lhe duas tranças.
Maria Ema dissera:
- Sou a filha da Beatriz. Minha mãe morreu. Vim dizer-lhe, como ela me pediu
Maria Ema engasgada em palavras. Palavras de silêncios antigos, atropelando as palavras ditas. Colando-se no céu-da-boca. Entaramelando-lhe a fala.
- Não esqueças de falar ao Senhor Conselheiro.
Assim sua mãe lhe viera pedindo. Assim sua mãe sempre o referira.
-Toma, Maria Ema. Oferta do Senhor Conselheiro.
A boneca que dizia palavras ou o cavalo de baloiço que mal cabia em casa. O quarto delas e a sala de fora.
A mãe muito arranjada revolteando vestidos em frente do espelho, os pés descalços na tapeçaria de veludo velho. Heranças parcas da tia Zulmira morta de uma obstrução. Maria Ema, criança, não entende o nome, e nem que seja ela morta de intestino ou artéria. Sabe que depois deste mistério de palavra, o pão que a tia cozia, e o azeite, faltaram lá em casa. Isso, Maria Ema sabe.
Ficava, às escondidas, a vê-la. Um afastar para onde nem a mãe lho dizia nem ela perguntava. O casaco comprido a cobrir um vestido, roçava os sapatos de saltos muito altos, vermelhos; tapava as meias de costura certinha sobre a curva torneada de cada perna.
Maria Ema esperava a noite toda. Assim o julgava. Esperava o beijo misturado no cheiro intenso vindo de um lugar silenciado. Lugar de vulnerabilidade, foi como o pensou, mas isso foi mais tarde. Pouco antes de agora que a ouve.
- Vai falar ao Senhor Conselheiro, Maria Ema. Peço-te.
Queria sua mãe dizer: depois. Mas calava o evidente. Calara sempre.
E tossia. Tossia havia muitos meses. Estava pele e osso. Nunca mais vestiu aqueles vestidos. Nunca mais saracoteou defronte do espelho.
Uma noite, e mais uma manhã e outra noite, foi o tempo que passou desde este querer dizer que o fosse avisar.
Depois.
Quando cobrisse o chão de uma massa mole que nem era vermelho, mas uma cor de dentro, um arroxeado, um quase negro. Uma cor de morte.
Que fosse ela, Maria Ema, dizer das quarenta e duas primaveras desfeitas antes de dois de Maio.
Era ainda Abril e era manhã cedo.
O orvalho cobria de frio a buganvília. Um frio fora de tempo.
-Tenho muita pena, repetiu o Conselheiro.
Maria Ema olhando-lhe o bigode de um ruivo quase vermelho. Duas metades de pelos retorcidos.
As mãos apertavam as pontas do casaco.
Maria Ema no degrau de pedra, dois degraus abaixo, a deixar que lhe crescesse o desprezo como um número elevado a enorme exponente.
E o Senhor Conselheiro repetindo:
-Tenho muita pena… "
E deixo-vos o texto do nosso amigo Eremit@ obreiro incansável desta bela e rica tarefa a que nos convidou e cujas palavras nos convocam:
"A criança corre sobre a vasta tapeçaria multicolor e odorífera, de flores do início da Primavera, sentindo o frescor das gotas de orvalho nos pés e a cada dia assim faz nascer a manhã.
Ao longe a mãe observa, mas nada mais distingue do que uma pequena, quase translúcida silhueta.
Sabe que é o filho que corre veloz pelos campos. Os sapatos jazem perto dela.
Onde ele os largou e abalou à desfilada campos fora.
Com a mão direita imita uma pala sobre os olhos, a fazer sombra.
Uma brisa levanta-se. O cabelo esvoaça-lhe pelo rosto tapando-lhe a visão.
Com a mão esquerda - não quer desviar os olhos do filho - tenta afastar o esvoaçante cabelo da frente dos olhos.
Sorri ternamente lembrando a frágil figura do filho, leve como uma pena na sua aparente vulnerabilidade física que tanto preocupa o pai, conselheiro de estado, emergente e exponente figura da oposição que, por todos os meios, faz obstrução ao governo, com a mesma tenacidade - quase obsessiva - com que segue todos os conselhos, prescrições, dietas, que acredita o ajudarão a combater, a enganar, o tempo, a vida, a morte, por mais uns anos na busca de uma aparente eterna juventude. "
Eremit@
As 12 Palavras indicadas por 4 paricipantes, 3 palavras cada, para esta 3ª edição foram:
Criança/ exponente/manhã/morte/obstrução/orvalho/silhueta/tapeçaria/
vulnerabilidade(s)/ pena/ afastar/ conselheiro.
vulnerabilidade(s)/ pena/ afastar/ conselheiro.
Deixo aqui três dos textos que escrevi e não estão lá publicados.
A cada novo Jogo divulgarei um texto de outra/o participante. A escolha deste 1º texto é aleatória pois qualque um tem potencialidades de encantamento na sua leitura.
I
Ia longe a manhã.
Como longe ia a infância. A criança solta que fora.
Era agora total a vulnerabilidade.
O ser, sem qualquer defesa.
A fina silhueta, jacente sobre uma tapeçaria de verdes sépalas, coloridas e perfumadas pétalas, nada tinha com que de si pudesse afastar qualquer agressão.
Nenhuma obstrução a fazer, por acção ou argumentos, e no entanto rebelava-se.
Como exponente era um direito que possuía. Inclusive poderia apelar ao apoio de um conselheiro que o orientasse, pois toda a defesa necessita o apoio de especialista na matéria.
De pouco lhe valiam inteligência, argúcia, poder argumentativo…
A morte não encontrara obstáculo, obstrução. Entrara pelo seu corpo como sol por manteiga.
O corpo nada mais do que uma coisa ali largada, pena lançada aos ventos da noite – com carinho embora – mas largada. Porque só na densa noite.
No alto via as estrelas, um crescente belíssimo onde, nos seus sonhos de criança, se balouçava.
Mas o corpo, na sua cama de flores sobre a terra, cobria-se de orvalho cuja humidade o penetrava.
Não entendia como podia um corpo de onde a vida se esvaíra sentir o que quer que fosse…
Fitando o movimento dos astros esqueceu-se de tudo o mais e procurou as explicações que todos sempre procuramos.
Como longe ia a infância. A criança solta que fora.
Era agora total a vulnerabilidade.
O ser, sem qualquer defesa.
A fina silhueta, jacente sobre uma tapeçaria de verdes sépalas, coloridas e perfumadas pétalas, nada tinha com que de si pudesse afastar qualquer agressão.
Nenhuma obstrução a fazer, por acção ou argumentos, e no entanto rebelava-se.
Como exponente era um direito que possuía. Inclusive poderia apelar ao apoio de um conselheiro que o orientasse, pois toda a defesa necessita o apoio de especialista na matéria.
De pouco lhe valiam inteligência, argúcia, poder argumentativo…
A morte não encontrara obstáculo, obstrução. Entrara pelo seu corpo como sol por manteiga.
O corpo nada mais do que uma coisa ali largada, pena lançada aos ventos da noite – com carinho embora – mas largada. Porque só na densa noite.
No alto via as estrelas, um crescente belíssimo onde, nos seus sonhos de criança, se balouçava.
Mas o corpo, na sua cama de flores sobre a terra, cobria-se de orvalho cuja humidade o penetrava.
Não entendia como podia um corpo de onde a vida se esvaíra sentir o que quer que fosse…
Fitando o movimento dos astros esqueceu-se de tudo o mais e procurou as explicações que todos sempre procuramos.
II
A morte, como a manhã, não é uma vulnerabilidade nem uma obstrução à vida.
Ambas fazem parte de uma imensa exuberante e bela tapeçaria feita de memórias, presenças e ausências, alegrias e dores que, sobre a corpórea silhueta da matéria que nos dá a humana forma, caem como o orvalho na flor, alimentando-a sem possibilidades de a afastar, sem conselheiro que nos possa orientar por maior que seja a mágoa, a pena de deixar os que amamos e de os ver em sofrimento.
Entre vida e morte existe um espaço intersticial onde a criança emerge. Aparentemente frágil exponente de todas as razões que ao longo do crescimento caem no oblívio, mas eterna combatente sempre vencedora.
III
A criança olhava a tapeçaria quando uma silhueta se interpôs em total obstrução à visão da mesma.
A luz da manhã incidia sobre ela e era a melhor hora para a ver e aperceber a vulnerabilidade das personagens que o génio que a tecera conseguira transmitir dando-nos a sensação de vida.
A criança move-se e ergue a voz, pedindo à pessoa de quem só vislumbra a iluminada silhueta o favor de se afastar, mas a sua atenção é atraída por uma pequena pena, quase penugem ainda, que parecia vogar nos raios de luz criando uma bela coreografia.
Noutra ala do palácio, vedada ao público, o conselheiro, entediado ouvia o exponente. De onde em onde emitia breves murmúrios assertivos, fazendo parecer prestar atenção, mas distraía-se observando o cintilar do orvalho residual nas plantas do jardim.
E foi nesta desatenção ao ser humano que lhe falava das suas dificuldades que a morte o veio encontrar.
O texto da McCorreia
"O Senhor Conselheiro
-Tenho muita pena…
Palavras ditas do cimo do que eram três degraus.
No alcatrão um carro buzinou para dentro do silêncio que era ela inteira.
Maria Ema. Silhueta debruada na luz de começo de noite, abraçava entre as mãos as pontas do casaco e uma mala. Figurinha magra, o vestido pendia sobre as botas rasas. Da boina, chegada sobre a testa, soltavam-se pontas lisas de um cabelo ruivo.
- Um cabelo tão vermelho deve ser único no mundo.
Dizia-lhe a mãe penteando-lhe duas tranças.
Maria Ema dissera:
- Sou a filha da Beatriz. Minha mãe morreu. Vim dizer-lhe, como ela me pediu
Maria Ema engasgada em palavras. Palavras de silêncios antigos, atropelando as palavras ditas. Colando-se no céu-da-boca. Entaramelando-lhe a fala.
- Não esqueças de falar ao Senhor Conselheiro.
Assim sua mãe lhe viera pedindo. Assim sua mãe sempre o referira.
-Toma, Maria Ema. Oferta do Senhor Conselheiro.
A boneca que dizia palavras ou o cavalo de baloiço que mal cabia em casa. O quarto delas e a sala de fora.
A mãe muito arranjada revolteando vestidos em frente do espelho, os pés descalços na tapeçaria de veludo velho. Heranças parcas da tia Zulmira morta de uma obstrução. Maria Ema, criança, não entende o nome, e nem que seja ela morta de intestino ou artéria. Sabe que depois deste mistério de palavra, o pão que a tia cozia, e o azeite, faltaram lá em casa. Isso, Maria Ema sabe.
Ficava, às escondidas, a vê-la. Um afastar para onde nem a mãe lho dizia nem ela perguntava. O casaco comprido a cobrir um vestido, roçava os sapatos de saltos muito altos, vermelhos; tapava as meias de costura certinha sobre a curva torneada de cada perna.
Maria Ema esperava a noite toda. Assim o julgava. Esperava o beijo misturado no cheiro intenso vindo de um lugar silenciado. Lugar de vulnerabilidade, foi como o pensou, mas isso foi mais tarde. Pouco antes de agora que a ouve.
- Vai falar ao Senhor Conselheiro, Maria Ema. Peço-te.
Queria sua mãe dizer: depois. Mas calava o evidente. Calara sempre.
E tossia. Tossia havia muitos meses. Estava pele e osso. Nunca mais vestiu aqueles vestidos. Nunca mais saracoteou defronte do espelho.
Uma noite, e mais uma manhã e outra noite, foi o tempo que passou desde este querer dizer que o fosse avisar.
Depois.
Quando cobrisse o chão de uma massa mole que nem era vermelho, mas uma cor de dentro, um arroxeado, um quase negro. Uma cor de morte.
Que fosse ela, Maria Ema, dizer das quarenta e duas primaveras desfeitas antes de dois de Maio.
Era ainda Abril e era manhã cedo.
O orvalho cobria de frio a buganvília. Um frio fora de tempo.
-Tenho muita pena, repetiu o Conselheiro.
Maria Ema olhando-lhe o bigode de um ruivo quase vermelho. Duas metades de pelos retorcidos.
As mãos apertavam as pontas do casaco.
Maria Ema no degrau de pedra, dois degraus abaixo, a deixar que lhe crescesse o desprezo como um número elevado a enorme exponente.
E o Senhor Conselheiro repetindo:
-Tenho muita pena… "
E deixo-vos o texto do nosso amigo Eremit@ obreiro incansável desta bela e rica tarefa a que nos convidou e cujas palavras nos convocam:
"A criança corre sobre a vasta tapeçaria multicolor e odorífera, de flores do início da Primavera, sentindo o frescor das gotas de orvalho nos pés e a cada dia assim faz nascer a manhã.
Ao longe a mãe observa, mas nada mais distingue do que uma pequena, quase translúcida silhueta.
Sabe que é o filho que corre veloz pelos campos. Os sapatos jazem perto dela.
Onde ele os largou e abalou à desfilada campos fora.
Com a mão direita imita uma pala sobre os olhos, a fazer sombra.
Uma brisa levanta-se. O cabelo esvoaça-lhe pelo rosto tapando-lhe a visão.
Com a mão esquerda - não quer desviar os olhos do filho - tenta afastar o esvoaçante cabelo da frente dos olhos.
Sorri ternamente lembrando a frágil figura do filho, leve como uma pena na sua aparente vulnerabilidade física que tanto preocupa o pai, conselheiro de estado, emergente e exponente figura da oposição que, por todos os meios, faz obstrução ao governo, com a mesma tenacidade - quase obsessiva - com que segue todos os conselhos, prescrições, dietas, que acredita o ajudarão a combater, a enganar, o tempo, a vida, a morte, por mais uns anos na busca de uma aparente eterna juventude. "
Eremit@
E não se esqueçam de passar por lá e deliciarem-se com a totalidade dos 34 textos.