03 fevereiro 2005

Estavam queimados os olhos




Estavam queimados os olhos.
Ardiam, como se o fogo junto a eles estivesse. Secando-os.

Destruindo as mucosas e queimando-os de forma irritante e dolorosa.
Estavam ardidos das lágrimas que corriam por dentro dela, não mostrando rasto à superfície, nem qualquer marca visível. Só ela as sentia e, mesmo que as não quisesse sentir, o ardor, queimadura bruta nos olhos, não permitia esquecimento.


Raras vezes chorava, por fora. Quando tal acontecia inchavam-lhe os olhos e, em dois minutos, não mais, ficavam num maceramento confrangedor e constrangedor, tanto mais que inchavam de imediato, ficando soltos, enormes globos doridos salientes, queimados como se por líquido corrosivo.

As lágrimas, de tão concentradas, eram excessivamente salgadas. O sal queimava-lhe a frágil pele ficando então bem visíveis os sinais da queimadura.

Não era como agora. Agora só queimavam por dentro, acentuando-lhe umas escuras olheiras, que vinham não se sabe de onde, o encovado da pálpebra e o emaciamento do olhar. Ficavam-lhe quebrados na cara. Como algo que ali não pertencesse e se admirassem por ali e assim se verem.

Subterrâneos rios de dores antigas corriam-lhe por todo o corpo. Flutuavam no sangue, estremeciam a cada batida do coração, vibravam com os movimentos, brilhando na pele como estranhas gotas nacaradas.

Sentia as águas a crescer dentro de si, a subirem pelo peito ameaçando submergi-la. Afogá-la a partir de dentro.



Dentro dela as águas agitavam-se, aprendera agora a triste palavra TSUNAMI, que, em abstracto, enquanto palavra saboreada, enrolada no modo de dizer, lhe fazia lembrar gelados, mas que infelizmente arrastava consigo imagens de fúria da natureza com a consequente devastação e morte.
E ficou a saber nomear as ondas que lhe estremeciam o ser ameaçando destrui-la. Trazia no corpo, no peito, um tsunami que a iria engolir com toda a fúria de tal fenómeno da natureza. O centro do tsunami, ou do terramoto do qual este emanava, abrigava-se-lhe no peito, bem no centro do peito, sobre o esterno. A pressão que aí sentia, era mortalmente opressiva e destruidora de vida. Da sua vida. Mas isso já pouco lhe interessava.

Aquelas violentas águas que a percorriam, e destruíam por dentro, queimavam-lhe os olhos, parecendo os de um Cristo crucificado.
Tudo o que desejava era poder fechá-los e não mais ser fonte, nascente, nem corrente de águas represadas e em fúria como as que a matavam

Por TMara

11 comentários:

Menina Marota disse...

Fiquei comovida com este texto... bonita homenagem. Tanta coisa já foi dita. A Natureza de tão bela, pode ser barbaramente mortal. Abraço. Gostei do teu blog. :-)))
http://eternamentemenina.blogs.sapo.pt/

Anónimo disse...

n sei se interpretei bem...mas n vi isto como uma homenagem ao tsunami...mas pronto...segundo akilo k interpretei tenho a dizer que o pior desastre é a destruiçao interior de água revoltas que correm sem ninguém ver...e o choro deixa de ser uma simples manifestaçao de tristeza...passa a ser o limite *****

Cláudia Félix Rodrigues disse...

TMara, acho que sabes que foi assim que me senti até há bem pouco tempo. Foi há quase um mês que o meu Tsunami transbordou e mudou a minha vida. Deixei de tentar ser forte para o mundo e assumi as minhas fraquezas. Não foi fácil, não é fácil. Ainda hoje "subterrâneos rios de dores antigas me correm por todo o corpo", mas aprendi a lidar um pouco melhor com eles.
Também (re)aprendi que tenho muitos Amigos e alguns deles vieram donde menos eu esperava. Tu és uma delas. Gosto de ti, sabias? Tens-me dado muito colinho. Beijoca grande

BlueShell disse...

"Raramente chorava por fora"...
sei o que isso é!
Agradeço as tuas palavras , o teu carinho. Obrigada. Jinho, BShell

Conceição Paulino disse...

Menina Marota - passa também por aí, mas é um texto ficcionado a partir de várias dores humanas. Volta sempre. És bemvinda. Bjs e ;)

Conceição Paulino disse...

Lana - a resposta k dei à Menina_Marota incorpora a tua. obrigada pela visita e coment. Por aqui e ali nos vamos encontrando. Bjs e ;)

Conceição Paulino disse...

Blue C - sentiste muito bem pq corriam em ti estas forças destruidoras (mas não necessariamente destrutivas). Como disse acima o texto é ficcionado a partir de vários pilares (p.exº): um o da tragédia no sudeste asiático, outro o de uma mãe (amiga) k perdeu o filho; o da viúva deste e o pessoal também. Há sempre qq coisa auto-biográfica. Quanto mais não seja pela forma como nos apropriamos das coisas , da interpretação e das representações k delas (nos) fazemos. Obrigada pelas tuas gentis, doces e simpáticas palavras. Só posso dizer k se tenho servido para algo fico feliz`´E bom gostarmos uns dos outros, ou, no caso presente: umas das outras. Curiosamente hoje só mulheres deixaram comentário. Sempre haverá um modo de escrita no feminino??? Bjs e :)

Conceição Paulino disse...

BlueShell - pois! Infelizmente sabes. MAs também é felizmente.Porque tens capacidade de amar e sofrer. Porque és "H"umana na nossa maior fragilidade, k é também a nossa maior força - a de sofrermos e aprendermos e crescermos com a dor, reerguendo-nos em mais humanidade.Cuida-te. Bjs solidários.

SalsolaKali disse...

...que linda imagem. É um fratal?

SalsolaKali disse...

O sal da vida que tanto nos tempera como nos seca e fustiga de dor e desespero.
O desespero de ver a água salgada subir e sufocar aos poucos…
Porque será que temos de complicar tanto a nossa vida? E de sentir tão fundo e tão forte? E porque será que temos tanto espaço para nos inundar de água salgada? Porque não nos inundamos de vida?
Retórica… apenas retórica e uma vaga esperança de um dia poder vir saber responder às perguntas dos meus dias.
Beijos TMara. Gostei imenso do teu texto. Tocou-me. E obrigada pela visita.
SK

Conceição Paulino disse...

Salsolakali :) captaste bem o espírito do texto.`´E um fractal. Achei-o adequado. BOm f.s. Bjs e ;)